8 de maio de 2011

a árvore

sobre a árvore
eu não tenho mais que dois
troncos que me enfarpelam
a rima

tenho se sou eu
se não
nem isso

cavidades que de alma
obliqua
dizem ser metáfora

isso sim
preocupa-me de facto

mas actualmente
tudo o que eu suponho
não passa de pura
lenta
resina
enfim

nasço
ao lado da casa escura
num grande hipotético mistério
com sombra
e mole escrita num trago

e diz a vizinha que não falo
como outrora
enquanto a secura se vai aproximando
e me caiem as folhas
num carpido poético

dizem as crianças que eu choro
durante a noite
a tarde
e eu pergunto porque me olhas
e me desfolhas num simétrico modo
de leitura surda

sou apenas árvore
ou armação literalmente corpórea

e se me olham eu digo seda
e vivo suave
nesta árvore absurda

7 de maio de 2011

o sémen

aqui permaneço
entre a sinopse das palavras
de murmúrios erguido
pondo em faces platónicas
vulcões
frases criadas
raramente promessas
mas fundas
ainda pérolas
nas curvaturas da alma

mas de nada emancipada
a mão que se me volteja
imperatriz enfim
pele minha
osso
ferro ou mesmo barro
folhas de jasmim que eu
trinco
já nem pedaços de mim
são usufruto

são outros
que na minha garganta pelejam
as fricções ficcionistas
desta vida
ah qual vida qual mal
me entregam aos lábios as lavas
para que eu fale

fale para elas e não para quem sou
que na minha fome me sustento
de escárnios e epitáfios de Florbela

mesmo sendo eu
pobre
poente de cuspo sobre o mar
ou rasto de coisas outras
no desfeito inverno

vou colhendo as ervas
e engolindo as trovas e as mandíbulas
já nem se me sentem
defronte ao espelho estilhaçadas

deixa lá
são outros que me sofrem
quando eu ando sozinho
e calado
ouvindo o porquê
estigmatizado do silêncio
espiritualmente puro embrionário
dessas palavras no final
tambor de águas
luminosas

28 de abril de 2011

os pardais

nunca me encontrei
entre os lençóis
depois de ver o mar
e limpar os sonhos

todos os dias é assim
abro o frigorifico
ensonado
e escuto os pardais
lá fora

deve haver um segundo
entre a manteiga
e os meus olhos
em que eu andarei
vivo ainda
pelos meus passos
de pantufa e de poesia

mas eu nunca me encontrei
nem mesmo quando mastigo o pão
às segundas feiras
olhando a janela
e os pardais de merda cantando
canções de vitória

só eles sabem onde eu moro

a água

gosto da água
que fura as paredes do pensamento
e nas tuas mãos cria sede

os meninos ficam lá em baixo
dançando
esperando o teu ventre
e a chuva

as tuas pernas tremem
enquanto á janela
espias os pássaros
inquietos
que se recolhem
á espera da manhã
seguinte

enquanto a água rasga o solo
em silêncio
e vai afundando o teu corpo

27 de abril de 2011

a criança

aqui me encontrei de súbito no ruído
no chão a decifrar as irregularidades
da palavra

o poema tornou-se uma locomotiva
nas minhas manias
mãos que teimo serem minhas
onde conduzo a linguagem
e ainda imagino
o mistério do olhar
no vidro
o passageiro vendo a paisagem
dissipar-se

vendo de cima
reinventei outro em mim
enquanto me levavam no tempo
entre os braços
e a noite deixava a casa
silenciosa no meu corpo aberto
coberto de sonhos
e brinquedos

não larguei a locomotiva
e chorei por água mais água
até que pela manhã
pela luz
pelas frinchas do tempo
da porta entreaberta
me pudessem observar
saltando
na bagunça

das frases lançadas ao ar
em fábulas incompreendidas
de bonecos e emoções
restos de bolacha e tristeza

e talvez me tenham encontrado
de facto
conduzindo a locomotiva
voltando para a cama
com palavras
e sono

com a esperança
que organizassem o mundo
depois